Por Carlos Ayres Britto

Ainda a propósito da referência desprimorosa que o Presidente Jair Bolsonaro fez aos padrões de alfabetização dos eleitores nordestinos, vou direto ao ponto: quem foi um dos primeiros brasileiros a bater ali, ó, no teto da própria Filosofia como Ciência geral das primeiras causas e da razão última das coisas? Aquele que também pioneiramente viu o Direito, não como um metafísico “filho do céu”, porém como um incessante produto da vida humana em concreto? Uma realidade tecida com os fios das relações sociais e, portanto, um objeto cultural? Pondo-se mesmo como precursor, entre nós, do que no mundo inteiro passou a se chamar de “culturalismo jurídico”? Foi Tobias Barreto. Tobias Barreto de Menezes, sim, nordestino da gema. Sergipano em cuja homenagem a histórica Faculdade de Direito do Recife deu a si mesma o nome oficial de “Casa de Tobias”, justamente.

Pergunto, agora: e quem, provavelmente, foi o maior poeta brasileiro de todos os tempos, tanto no estilo romântico de Lamartine quanto no condoreiro de Victor Hugo e no épico de Homero? Respondo com todo conforto analítico: foi o baiano Antônio de Castro Alves. O gênio que se despediu da Vida tão-só aos 24 anos de idade e que, em defesa dos escravos negros do Brasil, questionava assim duramente o próprio Deus: “Senhor Deus dos desgraçados, onde estás que não me ouves? Em que mundo, em que estrela tu te escondes, embuçado nos céus”? Moço que brincava com a lógica do tempo para juntar o “Descobridor da América” ao “Patriarca da Independência” do Brasil e lhes ordenar, altivo, ainda no paroxismo da indignação pelo crime de lesa-humanidade que foi a política pública de importação marinha dos nossos irmãos d´África: “Andrada, arranca esse pendão dos ares! Colombo, fecha a porta dos teus mares”! Enfim, o arrebatado poeta que, já à sua distante época (nasceu em 1847 e morreu em 1871), falava às claras do amor carnal entre homem e mulher, mas sem perder jamais o lirismo que também perpassava os seus arrebatamentos cívicos, de que serve de amostra este belíssimo verso: “Auriverde pendão da minha terra, que a brisa do Brasil beija e balança”.

Nesta marcha batida, avanço no tempo para listar exponenciais juristas nordestinos, como o próprio Tobias, Teixeira de Freitas, Sílvio Romero, Rui Barbosa, Gumercindo Bessa, Clóvis Bevilaqua, Pontes de Miranda, Orlando Gomes, Antônio Luís Machado Neto, Lourival Vilanova, Seabra Fagundes e Paulo Bonavides. Nomes dessa Região brasileira que é o habitat das mais tépidas águas do mar, do mais nítido azul do céu e das luas cheias mais grávidas de poesia. Rutilância jurídico-científica digna de comparação, já no plano literário, com as obras dos paraibanos José Lins do Rego e José Américo, do pernambucano Gilberto Freyre, do alagoano Graciliano Ramos, dos baianos Jorge Amado e Ubaldo Ribeiro, da cearense Rachel de Queiroz, do paraibano-pernambucano Ariano Suassuna, para citar apenas estes. A mesma fulgurância de sentimento e pensamento que, afunilando as coisas para os domínios da arte poética, suscita mais uma pertinente pergunta: quem, ombreadamente aos cariocas Olavo Bilac, Cecília Meireles e Vinícius de Moraes; aos paulistas Mário de Andrade, Hilda Hilst e Paulo Bomfim; aos gaúchos Mário Quintana, Raul Bopp e Carlos Nejar; à trinca mineira Carlos Drummond de Andrade/Murilo Mendes/Adélia Prado; ao amazonense Thiago de Mello e ainda ao mato-grossense Manoel de Barros…, quem, repito, mais desenvolto subiu os degraus da excelência que o paraibano Augusto dos Anjos, o cearense Patativa do Assaré, os maranhenses Gonçalves Dias e Ferreira Gullar, os alagoanos Jorge de Lima e Lêdo Ivo, os pernambucanos Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Mauro Mota? E quem mais brilhante de inteligência e mais profundo em cientificidade do que o pedagogo recifense Paulo Freire e o tão filósofo quanto pedagogo e sociólogo aracajuano Manuel Bomfim? Manuel José Bomfim, tido por Darcy Ribeiro como o pensador mais vigoroso e original de toda a América Latina, remarco.

Já me aproximando do fecho destes escritos, passo a divisar essa mais larga porta da arte que atende pelo nome de “música” para desassombradamente perguntar: qual a mais reluzente estrela da bossa-nova, único gênero musical em que o Brasil se fez e se faz e nunca deixará de se fazer a pátria da mais requintada beleza pra divino nenhum botar defeito? O baiano João Gilberto é a resposta. O João Gilberto da mesma Bahia com “h” de Dorival Caymmi, Raul Seixas, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Simone, Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Margarete Menezes, Rosa Passos, a dupla Dodô e Osmar, Armandinho Macedo, Moraes Moreira, Baby Consuelo, Pepeu Gomes e Tom-Zé, diante de cujas composições e/ou interpretações a gente se põe mentalmente de joelhos. Bahia também de um dos dois melhores percussionistas do mundo: Carlinhos Brown. Dando-se que o outro mago da percussão não foi senão o pernambucano Naná Vasconcelos. Conterrâneo, a seu turno, de quem? Ora, de ninguém mais ninguém menos que esse filho dileto do talento puro que foi Luiz Gonzaga. O que voou no dorso da “Asa Branca” para pousar nas mãos em concha do Pai, tão surpreso (Ele, o Pai) quanto feliz por se ver ombreado por uma das suas humanas criaturas. Nascido ali entre os Estados da Paraíba do albino Sivuca e “das Alagoas” do não menos albino Hermeto Pascoal, ambos de criatividade tão intensa quanto profunda e arrebatadora. Mesmíssimo Estado de Alagoas, por sinal, de um dos mais bonitos versos sociais da língua portuguesa (pra não dizer o mais bonito de todos) do inspiradíssimo compositor-letrista, musicista-arranjador e intérprete que atende pelo glorioso nome de Djavan. Que verso? “Sabe lá o que é não ter, e ter que ter pra dar”?

Concluo. Esse é o Nordeste de Dominguinhos, Geraldo Vandré, Belchior (“Na parede da memória, esta lembrança é o quadro que dói mais”), Alceu Valença, Jackson do Pandeiro, Capiba, Fagner, Lenine, Chico Science, Geraldo Azevedo, Alcione, Ednardo, Amelinha, Zeca Baleiro, Chico Cesar, Elba e Zé Ramalho. Nordeste onde o povoamento do Brasil começou. Ponto de partida de um País que foi povoando outras porções de si mesmo e que terminou se interessando mais por essas novas plagas do que pelo seu gread de largada, é fato, mas sem esquecer jamais que no lastro do seu geográfico berço é que ele tem o mais cristalino espelho de si mesmo. O único espelho em que poderá se ver ao mesmo tempo como o infante que foi, o moço que é e o adulto que será para todo o sempre. Assim indígena como europeu e ainda africano, porém nas dobras de uma simbiose da maior riqueza antropológica, linguística e cultural. Feliz por apostar todas as suas fichas em sua integridade afetiva. Orgulhoso desse tipo cristão e ao mesmo tempo ajuizado de inteireza. Verdadeira condição de continuidade da sua própria integridade territorial, definitiva conquista da sua pureza ético-democrática e decidida busca do seu arejamento civilizatório. Uma brasílica sociedade que se sabe capaz do salto quântico para o definitivo status de comunidade (de “comum unidade”, é sempre bom lembrar). Além do que um inato ou mais inspirado passista desses incomparáveis ativos estéticos do maxixe, do axé, do carimbó, do frevo, da chula, da capoeira, do fandango, do maracatu, do xote, do xaxado e do baião, a coreografar as gingas todas da sua monolítica unidade.

Minha prece, então, Tupã e Jaci; minha bênção, Jesus e Maria; saravá, meu pai Oxalá e minha Mãe Menininha do Gantois.

Carlos Ayres Britto é ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal – STF -, professor, constitucionalista e parecerista.