Ele é a própria referência que reconhece ser necessária para as crianças pretas em nossa sociedade. Negro, morador de periferia, se tornou produtor cultural, mestre em Educação e Educação Étnico-Raciais pela UFSB, professor de História graduado pela UESC, Especialista em Gestão Cultural. Idealizador e criador do Projeto Encantarte na periferia de Itabuna, do PreAfro – Pré-Universitário para Afrodescendentes e integrante do Conselho de Igualdade Racial e do Conselho de Cultura de Itabuna. “Acredito que nós, negras e negros, devemos cultivar o sentimento da vitória”. Um certo Nietzsche chamou isso de “vontade de potência”.

Nessa entrevista à repórter Elba Machado, especialmente para O Trombone, França, que acaba de disputar uma eleição para vereador, fala de representatividade e de ação, para que esse “sentimento de vitória” – não com inspiração nietzscheana, mas no exemplo de Zumbi dos Palmares, que transformou a vontade em potência e em vitória – se torne uma realidade na vida de todos, como ocorre com ele próprio em sua trajetória na periferia de Itabuna.

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Quem é Egnaldo França?

Sou produtor cultural, mestre em Educação e Educação Étnico-Raciais pela UFSB, professor de História graduado pela UESC, Especialista em Gestão Cultural, Idealizador e Criador do Projeto Encantarte na periferia de Itabuna, do PreAfro – Pré-Universitário para Afrodescendentes e integrante do Conselho de Igualdade Racial e do Conselho de Cultura de Itabuna. Sou também agente comunitário de saúde há 24 anos.

Qual a importância da representatividade para uma população negra?

Principalmente para nossas crianças, a representatividade é uma forma de você mirar em quem você quer ser. Então, para as crianças negras da periferia, para as pessoas da periferia, ter uma representatividade positiva é fundamental, até porque nos livros didáticos a nossa representatividade ainda está no chicote, nos livros didáticos os negros ainda estão numa situação de condição de desumanidade. Então é muito importante quando nós estamos como uma referência positiva, principalmente para as crianças, para que elas mirem na positividade. E, talvez, não por querer ser quem nós somos, mas por saber que nós podemos ser o que nós quisermos. De preferência ser o melhor.

Atualmente, qual a realidade do povo negro na cidade de Itabuna?

A cidade de Itabuna desde 2009 figura entre as cidades que mais matam jovens entre 14 e 24 anos. Desses jovens, dessas pessoas que morreram, a grande maioria é de adolescentes e jovens negros, moradores da periferia em condição de pobreza.  Então, a situação do povo preto na cidade de Itabuna é preocupante.  Itabuna já saiu da estatística da primeira cidade em que mais mata jovens. Mas, ainda é uma cidade muito violenta para esse tipo de público, para o público jovem negro.

Você poderia traçar um retrato do que se vê no mercado de trabalho em Itabuna, especialmente para as pessoas negras e moradores das áreas periféricas?

Nossa realidade precisa ser mudada, o quadro de empregos ainda é de subalternidade. Quem mora nas periféricas ainda trabalha nos carros de lixos, é a pessoa que vai varrer o chão de loja, a doméstica, e a gente quer, precisa mudar essa realidade. As pessoas precisam ser ver, por exemplo, como gerentes das lojas, como professores nas universidades, a gente precisa ainda mudar esse quadro de preconceito, principalmente no shopping. A maioria dos negros no shopping ou eles estão varrendo o chão ou estão de terno trabalhando como segurança ou estão nos serviços mais subalternizados. Os negros e as negras que estão nos serviços de frente do shopping, geralmente aqueles que têm corpinho e aparência de modelo.  Ainda é um modelo excludente para se trabalhar em ambientes por exemplo o do shopping. Então a realidade é de exclusão social e de racismo.

É possível ver algum avanço na garantia de direitos ou essa é uma situação que ainda deve demorar para ser percebida pela sociedade?

Somos a maioria do povo brasileiro, mas não somos comtemplados na maioria dos direitos sociais, direitos civis e os direitos trabalhistas. Ainda somos a maioria encontrados nos trabalhos escravos, que hoje chamam de Análogos à Escravidão. Ainda somos a maioria nas prisões, nossos salários são os mais baixos, as mulheres negras têm os salários mais baixos – até do que dos homens negros –, são a maior parte das vítimas que são violentadas. O cumprimento do Estatuto da Igualdade Racial é o ideal para que tenhamos um país com o qual sonhamos, de igualdade social e racial.

O que estaria faltando para concretizar esses direitos na vida do povo preto?

Nosso povo preto nas universidades, fazendo valer as cotas. Implementação e efetivação da lei do ensino e da cultura africana e indígena na sala de aula, que é a lei 10.639. Então nós já temos um arcabouço de leis que precisam ser cumpridas. Sem falar que, infelizmente, a gente precisa de leis para realizar algo que deveria ser ético e comum, que é o respeito à diversidade, pluralidade e à nossa etnia. Como não existe isso, é necessário que o dispositivo de lei seja acionado. Então, é necessário o cumprimento da lei do Ensino da Cultura Afro, do Estatuto da Igualdade Racial, que está em vigor, porém, não é cumprida. O nosso povo não tem terra, não tem emprego. Nosso povo precisa de um suporte, saúde, educação, assistência social, que seja de forma digna. Isso é o necessário para que tenhamos um país mais justo, mais igual.

Você falou de violência, mas recentemente houve uma comemoração por parte do governo federal, de redução dos índices de violência no Brasil…

Um dado que não pode se esquecido é que o Atlas da Violência Nacional 2020, aponta 57.956 homicídios em 2018, que dessas mortes 75,7% são de pessoas negras. Então essa estatística não significa que é comum porque somos a maioria. Não é comum porque seria comum se maioria estivesse na universidade, se maioria estivesse nos cargos públicos, se a maioria fosse prefeito, se a maioria fosse vereador, se a maioria fosse senador, se tivéssemos um presidente negro, isso seria comum dentro de todas as estatísticas. Mas nós só somos a maioria nas estatísticas negativas, da violência, da falta de emprego, da fome, da miséria, então, isso não é comum. E a gente não pode se acomodar com esse tipo de estatística, a gente precisa virar o jogo. E que a nossa maioria esteja realmente de forma positiva representada nos espaços de poder, na universidade, nas escolas, nos IFBAs, nos cargos públicos, nas câmaras municipais, nas prefeituras como prefeitos, como governadores, senadores, deputados e, assim, será uma representação positiva. Mas viva Zumbi!, viva Marielle!, viva Maria Gusmão!

Quais são os seus projetos para os jovens da periferia de Itabuna?

Para o jovem negro da periferia já realizamos vários projetos. O projeto de inclusão a partir da arte é o primeiro, nesse projeto nós temos o recorte de gênero, com a banda percussiva Negras Perfumadas, uma banda de mulheres, uma banda de percussão só com mulheres. O nosso projeto não é só para nossa comunidade, é para ampliar para outras comunidades que a gente já faz aqui região do Pedro Jerônimo, Daniel Gomes, Vale do Sol, Maria Pinheiro, Fonseca, Novo Fonseca. E a gente precisa levar isso para outras comunidades, o que falta é recurso. Mas, o importante que a gente continua na luta, para que esses projetos continuem indo em frente. Trabalhar a questão do empoderamento da mulher, da profissionalização dos jovens, do curso pré-universitário para negros, como o PreAfro, nós temos condições de melhorar o que a gente já faz, porém ainda falta o apoio do poder público, para que esses projetos tenham mais visibilidade e um alcance maior nas periferias de Itabuna.

“Eu acredito muito na juventude”

Qual a importância do Encantarte nessa construção, na luta pela transformação dessa realidade que você descreve?

É uma importância muito grande. Primeiro, devemos salientar que o Projeto Encantarte existe desde o ano 2000, o qual foi capaz de incluir nas universidades cerca de 400 jovens negros das periferias de Itabuna, não só das nossas comunidades, mas de vários bairros das periferias itabunense. Muitos desses jovens já estão no nível de graduação, pós-graduação, mestrado e doutorado. Já temos jovens inclusive trabalhando no IFBA como professor, na UESC como professor e em outras organizações, entidades públicas e privadas. Temos muitos jovens, professores na rede pública de ensino, professores nas redes particulares. Então, já temos um resultado muito positivo. Temos jovens dançando em companhias de dança na Europa, temos jovens tocando em bandas no Brasil inteiro, jovens que trabalham em projetos e já trabalharam em projetos de educação pela arte, como Casa das Artes, como Agente Jovem da FICC, como projeto Mais Educação, portanto o Projeto Encantarte já teve alcance nos quatro cantos da cidade, por meio dessas ações voltadas para arte e educação com recorte racial. Então o que falta hoje é uma sede, pois não temos. Somos parceiro da escola Margarida Pereira, que cede o espaço para atuarmos. Há 20 anos o projeto existe com essa atuação de parcerias, e nosso maior sonho é ter a ampliação dessa proposta, ter nossa sede, e também ampliar para mais bairros e que Itabuna seja trabalhada de fato por meio dessa inclusão.

Você falou que é agente comunitário de saúde, mas tem uma atuação voltada para a prevenção de doenças. Como funciona?

No programa de agentes comunitários de saúde trabalho com a vertente da Arte, Saúde e Educação. Criei um núcleo de artes, que trabalha com os agravos da população, através do teatro, focando na prevenção, nas escolas, nos postos de saúde nas comunidades. Esse grupo encena peças teatrais e outras manifestações, todas voltadas para a prevenção desses agravos, a exemplo da aids e infecções sexualmente transmissíveis.

20 de Novembro. Qual recado você deixaria para a juventude, especialmente a juventude negra de Itabuna?

Eu acredito muito na juventude. Acredito que essa juventude, que não é do amanhã, a juventude é do agora. A transformação da sociedade pode ser feita com a força dessa juventude. A juventude tem o potencial para fazer o melhor, transformar essa sociedade. Então, eu acredito que essa força jovem pode servir para plantar o bem, plantar a educação, a política e a participação social. A juventude precisa acreditar mais em seu potencial e ocupar os espaços de poder. E acreditar no jovem que quer ocupar esses espaços de poder, o jovem negro.

Nós precisamos acreditar mais, em nós mesmos. Depositar a nossa confiança, em nós mesmos. Não temos que ver nós jovens como suspeitos, nós já somos vistos assim pelos outros. Entre nós, temos que criar um sentimento de confiança, de sororidade, que as mulheres têm, umas com as outras. Acima de tudo, devemos cultivar o sentimento da vitória. Acredito, sim, que nós devemos acreditar mais em nós mesmos.