Por: Cleide Ramos, Celia Maria Fonseca e Eduardo Passos Júnior
A 11ª Promotoria de Justiça de Itabuna, titularizada pela Promotora de Justiça Cleide Ramos, realizou nesta quinta-feira o círculo restaurativo da 3ª agenda do Novembro Negro, com o objetivo de promover um espaço seguro e reflexivo para o diálogo sobre o significado do Novembro Negro, o enfrentamento ao racismo estrutural e o papel do Ministério Público na promoção da equidade racial e da justiça restaurativa.
O círculo restaurativo foi conduzido pelo servidor Eduardo Passos de Andrade Junior, tendo como co-facilitadora a Promotora de Justiça Cleide Ramos. O evento teve como público alvo 15 participantes que integram os quadros de servidores e colaboradores da promotoria regional de Itabuna, com a duração de 3 horas.
Utilizando o método de círculo de construção da paz, o servidor Eduardo Passos Jr. explicou aos participantes o significado da justiça restaurativa na transformação de conflitos e pacificação social, como herança ancestral de povos originários e comunidades tradicionais africanas, baseadas na escuta ativa, respeito e igualdade de voz.
Após a exibição de pequeno trecho audiovisual do poema Navio Negreiro, do poeta baiano Castro Alves, iniciou-se o círculo tendo como pergunta norteadora: “Quando você ouve a expressão ‘Novembro Negro’, o que sente ou o que vem à sua mente?”.
Os participantes contaram suas histórias entremeadas de memórias desde a infância até a vida adulta, nas quais experienciaram ou presenciaram situações de discriminação racial, provocando intensa emoção, mas também houve momentos de riso com os relatos sobre os apelidos de infância nada convencionais, tais como “macarrão sem molho” , “vela branca” e “comprida sem roda”.
O facilitador compartilhou sua trajetória enquanto homem negro que, apesar de ter concluído o curso de Direito na Universidade Estadual de Santa Cruz, precisou de esforço sobre-humano para conquistar uma vaga no concurso para servidor do Ministério Público do Estado da Bahia. Enquanto isso, muitos de seus colegas contemporâneos, com características fenotípicas brancas, alcançaram cargos de maior prestígio, obtendo maior sucesso econômico e ocupando espaços de poder.
Em sua percepção, essa diferença de desfechos profissionais evidencia a persistente desigualdade presente nos desenhos institucionais, ressaltando que “quanto mais se ascende na hierarquia dessas instituições, menos pessoas negras encontramos, o que reforça a necessidade de reflexão coletiva e de ações que promovam equidade e representatividade”.
O objeto da palavra circulou em mãos que gesticulavam memórias e emoções, e os ouvintes empáticos e atentos sorviam as dores do racismo presente em cada lembrança evocada, reconhecendo, porém, que o novembro negro é uma conquista e uma esperança de um porvir em que todos os dias serão uma lembrança do resgate histórico da promoção da equidade nas relações humanas..
Anderson Santos Silva, servidor do MP/BA há 20 anos, lembrou que muitas pessoas não têm apoio de outras e estrutura com igualdade de oportunidades para buscar seus sonhos, ressaltando o privilégio dos servidores que podem contar com salários dignos pagos regularmente todo mês e atuar numa instituição que tem a missão de promover justiça social.
A servidora Rose Santana dos Santos, que integra a instituição há 07 anos, contou que atuou como Conselheira Municipal de Promoção da Igualdade Racial no município de Vitória da Conquista, e sempre ouviu brincadeiras pelo fato de ser uma mulher branca e loura antirracista. Fazendo um paralelo com o racismo recreativo, disse que a diferença é nítida: era sempre uma brincadeira, que não a fazia chorar, como ocorre nos episódios de racismo, citando o caso de uma grande atriz estadunidense, que no início de sua carreira ouviu do diretor de cinema o que ele pensou ser um elogio: “Olha como ela é bonita, imagine se fosse branca…”, palavras que soaram como açoites e provocaram intenso sofrimento psíquico à jovem atriz negra.
O servidor Luiz A. Gomes Felipe definiu o calendário do Novembro Negro no país como uma conquista, pois a discriminação e o racismo é real, e a pergunta é: “o que podemos fazer para melhorar”. Homem negro, Luiz relatou emocionado episódios em que percebeu ao transitar em alguns espaços públicos que pessoas brancas ficavam apreensivas ao vê-lo aproximar-se, pois no imaginário popular qualquer homem negro é associado a um criminoso.
Para o servidor Geziel David S. de Souza, “novembro negro é acima de tudo uma ocupação de espaço, mas muitos ainda não conseguem e não têm acesso ao básico”.
Do círculo restaurativo brotaram esperanças: que pudessem participar de outros círculos, incluindo os servidores e assessores de outros municípios, para a promoção de uma cultura de igualdade e empatia no ambiente institucional, reverberando na perpetuação do atendimento humanizado e respeitoso, notadamente para o público que procura a instituição em momentos de dificuldades; maior sensibilidade à promoção da igualdade racial; produção de compromisso coletivo e práticas de ações afirmativas no âmbito institucional.
A servidora Michelle Pinheiro Monteiro, de ascendência indígena, alertou que se a pessoa não estiver no grupo que sofre racismo, pode estar no grupo dos que o praticam; que nunca teve olhar de preconceito porque conviver com pessoas negras como iguais sempre fez parte de sua história de vida, e que hoje entende que pode exercer sua influência e combate ao racismo a partir da criação de seus filhos.
O poema de Castro Alves, declamado em vídeo, retrata a crueldade da herança colonial:


Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos… o chicote estala.
E voam mais e mais…
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
(…)
Era um sonho dantesco…
(…)
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
O servidor Marcelo Ribeiro Oliveira, também psicólogo, que atende pessoas de baixa renda, com histórias de vida atravessadas pelas interseccionalidades e opressões de gênero-raça-classe-geração, externou o seu maior sonho: que venham mais membros negros retintos, e que um dia a instituição seja gerida por uma pessoa negra. Que o clamor de Castro Alves continue retumbando:
Mas é infâmia demais! … Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!Andrada! arranca esse pendão dos ares!Colombo! fecha a porta dos teus mares!





