A quem serve o Carná?

Jorge de Souza Araujo

Jorge AraujoNa sociedade do espetáculo que nos atravessa, a tudo tornando show e feira e festa e consumo de imagens, nem mesmo a Igreja se permitiu imunizar, consagrando os dois últimos papas em cerimônias coalhadas de pompa e circunstância, bem distante da franciscania comportamental dos cristãos primitivos. A resposta é uma só: a era midiática a tudo impõe um rito e as coisas simples quase se travestem em injúria, de tão heréticas já se assemelham a olhos gulosos de luz, cor, som e ação televisivo-cibernéticos.

Sob olhares complacentes dos governos, submetidos aos pulsos e compulsões de agências patrocinadoras de farras e índices, o custo de vida reajusta ao sem limite suas tarifas de abuso. Isso num modelo que não respeita sazonalidades quando o assunto é reajuste de salário. Bancos e banqueiros, empresas e empresários permanecem em berço esplêndido de impunidades e os usuários, desesperados, continuam buscando soluções para seus eternos problemas. Em vão, porque tais assuntos, sem pauta oportuna de novidades no front da mídia, não oferecem palatabilidade, aliás, assuntos desconformes quando tudo na vida é carnaval.

Vão me tachar de operador de ociosas arquitexturas ou macaco moreno em loja de conveniências. Corro o risco, mesmo em desacerto com os inúmeros contextos de elogios aos carnavais, com suas mais que azeitadas trezentas atrações, toneladas de decibéis, farelos de ilusões em meio a tantas ausências. Não suporto ser o idiota da objetividade, tampouco o consumista de subjetividades contrafeitas, mas não tenho como me furtar à pergunta insidiosa, face ao monte de declarações embevecidas dando conta do sucesso do empreendimento momesco, sobretudo os fora do período convencional. Afinal, a quem serve a festa?

Se as prefeituras estão falidas — conforme insistentemente acentuam vitoriosos alcaides em gloriosos dias de mandato —, como será possível encaixar tantas milhas de reais para paga das milhares de atrações, os tantos risos, tantas alegrias? Resta-nos concluir que carnaval é sempre carnaval — e se o povo só quer festa, tome-lhe delírio e êxtase, que a vida real anda muito difícil e o estresse da vida moderna precisa ser debelado com a queima de calorias no asfalto. Se falta pão na mesa do pobre, dê-lhe o pão do espírito na fartura do circo. Inda mais quando alguns mil palhaços se exilaram do salão da honradez, compactuando com o que antes execravam, em razão da loja-política de conveniências, que aponta todo ano como ano de redenções, tricas e futricas da moda, compreendem?

Carnaval tem glamour, mesmo em períodos fora do Carnaval — essa praga que toma conta do Oiapoque ao Chuí, desobrigando autoridades de um pouco de vergonha na cara suja de suas administrações —, asseguram-nos os peritos em festas populares. Mas prefeituras falidas, se têm dinheiro para assegurar a fortuna de bandas e bandos locupletários com desanuviadas inflexões financeiras em poucas horas de folia, por que resistem a cumprir outros roteiros culturais que salvariam da vergonha e do constrangimento escolas desalentadas, bibliotecas desaparelhadas, cidades sem circo real, sem cinema na praça, sem feiras de livro, sem teatro regular, sem galeria de arte, sem festivais de folclore, sem museu, sem agenda, sem calendário, sem política de cultura que não seja pré-, pós-, ou carnavais fora do contexto carnavalesco propriamente dito?

Resposta para as redações? Talvez não, que as redações estarão ocupadas com outro estilo de preocupação. Penso que as respostas deveriam ser encaminhadas ao Artista Popular, que nada de braçadas contra a correnteza, próximo da asfixia, mas com a responsabilidade e a altivez de agentes culturais que pensam na cultura como prática das liberdades públicas, liberdade de sonhar, de pensar, de ler, de aprender. Respostas também para as Academias de Letras, que parecem pertencer a uma insólita ordem dos mendicantes, tal sua sorte de dependência dos humores governamentais. Contas de luz, de água, do telefone em desuso? Paguem os sócios, imortais que só o são porque não têm onde cair mortos. Circos, Folias, Festas Populares? Matemos uma vez mais os idealistas que, como pedras que rolam na estrada, imaginaram cidades como Atenas redivivas, a revigorar de ânimo os trabalhadores pelas causas da cultura sem adereços.

E quanto ao pré, durante ou pós-carná, que felizmente não mais me rompem os tímpanos com sua fúria sonora e seu gostinho de repetição até à náusea, a quem é que eles servem em cidades sem folgas financeiras para grandes projetos? Servem a quem deles se servem e cevam, comendo a carne e lambuzando os ossos, conforme a praxe.

Jorge de Souza Araujo é poeta, ficcionista, ensaísta e dramaturgo, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela UFRJ, Professor Adjunto da UEFS, tem 35 livros publicados