Por CARLOS EDUARDO SODRÉ
Quando o valoroso mestre e ex-deputado autonomista, Nestor Duarte – o velho, escreveu a obra “Tempos Temerários” (1958), a sua aplaudida análise, ali expendida, enfocou as três décadas antecedentes, ele próprio classificou aquele tempo como “os 30 anos mais temerários do mundo” – período que um seu biógrafo, o jornalista Biaggio Talento, considerou como “das definições ideológicas, quando o Ocidente se dividiu entre o capitalismo e o comunismo e todas as variantes e adaptações possíveis dentro dessas tendências políticas”.
Era, aquela época, um tempo de angústias que o mestre Nelson de Souza Sampaio chamava de “época dos conflitos íntimos” inserida na humana angústia eterna, numa síntese, a busca – como deduziu o atento biógrafo – da “definição ideológica, o caminho a seguir, o posicionamento pessoal ante o mundo”. Viviam, então, aquelas gerações, é bem verdade, o entrechoque das referidas concepções ideológicas e a de-finição que o momento impunha escolher, entre ambas. Mas, mesmo sob essa com-pressão, não era comum a escolha do capitalismo ou do comunismo, sem que isso se apoiasse em denso conhecimento da significação da teoria escolhida.
Hoje, quase setenta anos depois da publicação da festejada obra acima mencionada, vivemos dias tão angustiosos e causadores de temores tão elevados que, seguramente confrontados com os “tempos temerários” a que aludiu o saudoso político baiano (saudoso pela valentia cívica e pela qualidade parlamentar esta, uma virtude em que a Bahia era pródiga, muito distante de hoje, reduzida a desempenho tão pobre, salvo uma ou outra quase solitária exceção), colocam-nos sob imensurável an-gústia: de um lado, a reconfiguração do mapa mundial no que concerne ao equilíbrio da força dos países e blocos, além das novas imposições monocráticas a inter-ferirem expressivamente no contexto do comércio internacional; d’outra parte, essa odienta polarização política, radicalizada e fanatizada, anti-política tradutora de completa ausência de serenidade, de equilíbrio, de responsabilidade e de um átimo sequer de patriotismo. Os “tempos temerários” de ontem, aos quais aludiu Nestor Duarte, são dor de cabeça pequena diante do peso dessa nova realidade que impac-ta o mundo e a brasileira humanidade, internamente, se debate.
Os tempos temerários de hoje, desgraçadamente, refletem um ambiente altamente contaminado pelo paroxismo do ódio e pela bestial insensatez. As angústias que, ontem, assaltavam os espíritos dos que cotejavam as teorias políticas e aprofunda-vam a análise que precedia as opções, tornando-as embasadas em razões sempre sólidas, ainda que certas ou erráticas, mas capazes de enriquecer as tertúlias e os debates políticos. Não é o que precede as atitudes de hoje, contaminadas pela emo-cionalidade desvairada, pelo valetudinarismo dos interesses e a inconsequência dos que – quase sempre nulos de conteúdo político ou espírito público – põem-se em combate – o tacape do “vale-tudo”, que nenhum interesse tem pela lógica e o sentido das coisas, menos ainda pelo que é de todos, que não se importam sequer com o risco de, estando todos no mesmo barco, sequer projetar as consequências do afun-damento da nau onde, de resto, a bordo da qual estamos todos…
2.
Nessa quadra da vida nacional que sugere dias temerários para o futuro – a perseverarmos neste confronto estabanado, desprovido da racionalidade e do bom senso que o país exige – tentam reduzir a questão à dicotomia esquerda X direita, divisão surrada e ultrapassada a qual, a ciência política já objetava (vide Bobbio, grande cientista social italiano, em Direita X Esquerda), redução essa com que a esmagadora maioria de seus defensores tenta, embriagados pela ignorância política e cegos pela miopia das conveniências, exercitar a hipocrisia com a qual camuflam os seus interesses: uns, para disfarçar teses empoladas com arrimo nas quais combatem méto-dos e práticas adversárias, inobstante, no poder, por vezes terminem por adotar e repetir; os outros, também por camuflagem, para defender privilégios conquistados – ou por vezes tantas, usurpados, mediante violência ou estupro legal.
O debate político ficou empobrecido ou praticamente derrogado. Luta-se “a tacape e borduna” nunca por ideias, sempre por conveniências. Teses, nem pensar. Nem é um combate, é o pugilato que envergonha, nada cria, nada aperfeiçoa, nada valoriza. Discute-se política, governo e costumes como se fora uma refrega nem de times adversários, de inimigos vorazes que se digladiam por opiniões sacadas dos instin-tos alimentados pela belicosidade do espírito e selvageria mental. A racionalidade se ausenta por isso em vez de combaterem o inimigo de todos – a corrupção – a relati-vizam quando o do seu lado é pilhado com a mão no erário público, na gatunagem que dilapida o que é de todos.
O combate aos homens públicos, indistintamente – sem ressalvar os que teimam em permanecer no sacerdócio da vida pública decente – exclui os que são do mesmo lado, absolvendo-os dos crimes iguais aos cometidos pelos adversários. Jamais se dão conta de que ninguém sobe aos cargos apenas com o voto próprio, o que impõe meditar e reconhecer: a culpa do mau político é também muito de quem o elegeu… É por isso que a Democracia é o grande instrumento da sociedade para lavarmos a sujeira. Não lavá-la com pano sujo, mas por que tudo permite ficar em solar clarida-de, nos permite saber quem, quantos e onde se dilapidou os recursos do povo.
“E la nave va !..”
Muito tenho refletido na lição do velho Nestor. Já me angustia o justo recolhimento no recesso de quem pensando em prestar outras contribuições, retirou-se da militância. A consciência e o reconhecimento da vocação insepulta estão a me dizer que o distanciamento sugere omissão. Que talvez seja a hora de desensarilhar armas para retomar o bom combate. Que recomece pela busca de um caminho que desvie a marcha batida para os vórtices da derrocada a que os extremistas ou meros divergentes sem olhos no futuro do país dos nossos netos, corrigindo os rumos em busca do futuro de prosperidade – que conjugue a importância significativa do capi-tal com a exuberante força do trabalho – com justiça social, atalhando o andamento temerário para o fracasso que a inconsequência não antevê e a prudência reclama, para o bem de todos.
CARLOS EDUARDO SODRÉ é advogado.