Adylson Machado

Adylson Machado

Se os bons textos alimentam o escrever, antes lavam a alma. No instante em que voltamos a conviver com o traço augusto de Jorge de Souza Araujo neste O TROMBONE, nos reportamos ao “Universo Paralelo”, da lavra de Ousarme Citoaian, no Pimenta. Se na música “domingo é dia de pescaria / lá vou eu de caniço e samburá” (“Pescaria” – 1952 – de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira) o nosso dimanche também é de encontro com o pseudônimo.

Um dos mais longos textos do Universo disse respeito justamente a JSA (O Homem e a Barba do Homem), edição de 16 de janeiro de 2010. Naquela oportunidade comentamos: “A propósito deste grandioso baiano, a omissão da imprensa regional em reverenciá-lo bem demonstra a qualidade de muitos que nela escrevem e o nível de sua ‘elite intelectual’. Por conta disso, renomado autor destas plagas tem Jorge de Souza Araujo como ‘escritor menor, ainda por se desenvolver’. (Haja vaidade!)”.

Considerando a contemporânea sociologia da cultura tupiniquim, que transita por remelexos sobre garrafas ou no quanto mais adiante e atrás pode ir a ossatura ilíaca, aparenta erudição quem discuta BBB, UUU, RRR, III, CCC, EEE a viabilizar ascensão ao painel de 3×4 no lugar comum do colunismo social.  

Em Ousarme o comentário sóbrio – mas exigente – sobre o redigir, fenômeno cada vez mais raro nas redações, em muito alimentadas pela “cultura da certificação” – como denominamos a importância dada ao certificado de conclusão de um curso no mundo contemporâneo, ainda que o graduado “tenha lido só para fazer a prova” (encômios para JSA) e ainda assim em trechos fotocopiados.

A ferina crítica aos que se descuidam da Flor do Lácio constitui lição aos cultores (cada dia mais bissextos), da beleza contida nas palavras e construções idiomáticas que fazem da Língua Portuguesa singular fonte de expressão, rica em demasia para as limitações externadas por recentes atores, que se imaginam dominá-la por haverem alisado bancos escolares, ainda que lancem a sintaxe na Fossa das Marianas.

Como muitos da sua geração, seu imaginário está construído em sólidos autores. Diferentemente de alguns muitos por aí que imaginam que a leitura de um almanaque de Capivarol ou de citação de grandes autores torna-os aptos à Academia.

Claro que fazemos ressalva, já que não consertaremos o mundo, mormente esse que aí está, tanto que buscamos em Carl Jung (Memórias, Sonhos, Reflexões) – posto em fala de personagem de Amendoeiras de Outono (Via Litterarum) – a singular conclusão: “Aprendi a não dizer aos outros o que não podem entender”.

No entanto, a grandeza e generosidade de Ousarme tendem à misericórdia, quando se digna lembrar da plebe ignara como já o fez com este escrevedor em texto de 29 maio de 2010 – Do Mandu à Madrinha de Tropa. E conhece liames deste escriba no que diz respeito à sinuca – nobre esporte de nossa puberdade, quando alugávamos bicicleta para deslocamento a São José do Colônia, o “Acaba Já”, cinco quilômetros Colônia acima, em busca do aprendizado proibido em Itororó.

Seu texto de 6 de março trilha pela monumental obra de João Antônio, Malagueta, Perus e Bacanaço, 1963 (dois Jabuti – revelação de autor e melhor livro de contos) também autor de outra maravilha – A Malhação do Judas Carioca–1975). Para nós, João Antônio, como retratador de proletários e marginais das periferias planetárias, é o parceiro de Plínio Marcos em lírico contraponto. (A propósito, de Mylton Severiano, pela Casa Amarela, “Paixão de João Antônio” (2005), trazendo suas cartas e revelações).

Como considerou Ousarme – que acabara de reler Malagueta, Perus e Bacanaço – e como nos sentimos com uma vontade danada de fazê-lo com tudo o que já lemos (se vida nos for dada), corremos a procurar Malagueta… e A Malhação… Mas nos decepcionamos, tamanha a bagunça de nossa biblioteca(!), desarrumada com as mudanças e de vez em quando assassinada em um exemplar, graças a uma dedicada funcionária que se debruça em limpá-los da poeira e aproveita para reduzir a expectativa de trabalho se encontra alguma vítima sem capa ou visitado por alguma traça.

Os verbetes desaguaram em No Meio da Ficção Surge um Ídolo Real, para homenagear Carne Frita e conclui: “Este texto é minha homenagem a Vadu Baié e Vivi Guimarães, piranhas do pano verde, e ao professor Adylson Machado, que conhece como poucos a sociologia do joguinho”.

Retomando o acima declinado e tendo que Vivi Guimarães seja o “Vivi” dos espetáculos que assistimos nos anos 60 – antes que o dono nos escorraçasse da “arquibancada” – lembramos de antológica partida, nos idos de 1962, entre um mineiro belorizontino, apenas conhecido como “Boca Mole” e o exímio taquista – também grande ponta direita do 22 de Agosto, em Itororó, desgarrado de Buerarema, juntamente com Alicio Peixe-Louro e Mundinho, pelas mãos de Waldélio Campos.

O mineiro não era nada bobo, tanto que Vivi, esperto como têm que ser os que gostam da arte, pedira 20 pontos de vantagem e jogava a segunda partida, apostas elevadas no entorno da mesa, pois ninguém na terrinha – que ainda não era da carne de sol – admitia que perdesse levando tal vantagem.

Perdera a primeira. Na segunda, bruto, levava vinte e seis pontos de frente quando restavam na mesa a seis e a sete. O salão respirou fundo e aliviado com a sinuca que o macuquense acabara de armar, pondo a seis colada na tabela, exatamente escondida atrás da sete, que estava no ponto, e a branca colada cá em baixo, cinco centímetros à esquerda se tomarmos como limite o ponto da quatro em imaginária linha reta até a sete, lá em cima.

A plateia exultava e vislumbrando um Eldorado propusera dobrar as apostas – acolhidas pelo empresário do belorizontino e lançadas em mais uma caçapa, único banco confiável no ambiente. “Boca Mole” tirou o giz do bolso, alisou a cabeça do taco (que retirara solene do veludo negro que revestia a caixa, montando-o como se um oboeísta azeitasse o instrumento para apoteose) e cantou a sete.

No bar, apinhado de curiosos e apreciadores, ouvia-se o zunir de uma mosca, a respiração presa, oxigênio economizado como se prestes a esgotar na crosta terrestre, reservado para o desiderato da explosão no aplauso ao nativo. Como na famosa cena de Hitchcock na partida de tênis em “Pacto Sinistro”, todos acompanhavam o esmero de “Boca Mole” cuidando da cabeça do taco (fazendo-o doce e cauteloso, como se afagasse rosto de primeira namorada), olhares transitando entre o giz e o olhar do jogador, fixado na bola sete. Talqueou a mão e disparou a tacada.

O salão gelou ao ver a preta cair e a branca girar por quatro tabelas da mesa descolando a seis e fazendo-a migrar lenta até ficar na boca da caçapa perto da sete. Um suspiro uníssono ocupou o espaço, de decepção, surpresa e incredulidade.

Corte: fechou a partida. Vivi desistiu. Nem mesmo aceitou receber 50 pontos de vantagem, desde que o mineiro desse partida pela cinco.

Se Vivi Guimarães estiver em Macuco, gostaríamos de reencontrá-lo, para lembrar do grande ponta direita que fazia a alegria das domingueiras e do exímio taquista que nos encantava em partidas memoráveis com Marcelo, Dé de Dodô, Nane, Nêgo Nengo há quase cinquenta anos. E lembrar da partida jogada com “Boca Mole”.

Por essas e outras, a grandeza do reencontro com Malagueta, Perus e Bacanaço. Triste, no entanto, por não localizar nos catálogos de DVDs “O Jogo da Vida”, inspirado na obra e dirigido por Maurice Capovilla, referido por Ousarme.

Para assisti-lo ao lado de JSA e OC, comentando a literatura na celulose.

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Adylson Machado é escritor, professor e advogado, autor de “Amendoeiras de outono” e ” O ABC do Cabôco”, editados pela Via Litterarum