Por Domingos Matos

“Quem disse que a boca é tua?”. A frase icônica, do traficante Zé Pequeno (Leandro Firmino), no filme Cidade de Deus (Fernando Meireles, 2002), atravessa o tempo, como, talvez, a mais lembrada de todo o filme até hoje.

Corta para 2020, 17 de março. Um imigrante haitiano mandou, na lata presidencial: “você não é mais presidente”. O mesmo que dizer: “quem disse que a Presidência é tua?”.

Ora, palavras proféticas, uma leitura de conjuntura que escapou dos grandes analistas políticos ou uma coragem fora do comum? Talvez, a última hipótese explique bem a cena. Em meio a jornalistas e claque – às vezes é difícil distinguir quem é o quê – dizer a um presidente que ele não é mais o presidente, requer uma dose de coragem que extrapola nossa compreensão.

Pois as palavras do haitiano se materializaram hoje. Nessa segunda-feira (6), o presidente que já não governa(va) ameaçou usar a caneta e até “demitiu” seu novo desafeto, o ministro Luís Henrique Mandetta, da Saúde. Mas em seguida a realidade bateu-lhe à porta: “quem disse que a caneta é tua?”, perguntaram-lhe, mesmo que em pensamento, ministros, estafetas e até a moça do cafezinho.

Sabe-se, por meio dos grandes portais e jornalistas que cobrem a política em Brasília, que o puxão de orelha veio do STF, do Congresso e dos… militares. Sim, a caneta não é do STF, do Congresso, nem do presidente. É dos militares palacianos.

Surgiu até a figura de um tal “presidente operacional” – ou seja, o dono da caneta –, hoje representada pelo general Braga Neto, ministro-chefe da Casa Civil. Isso, um militar na Casa Civil.

Como no filme de Fernando Meireles, Bolsonaro enfim encontrou seu Zé Pequeno. O problema é que, na obra cinematográfica, Zé Pequeno acaba morto por policiais… militares!

O Haiti – onde alguns dos militares desse governo fizeram bramuras – é aqui!

Domingos Matos é jornalista