Adylson Machado

Adylson MachadoDe Sérgio Buarque de Holanda e seu “homem cordial” a Darcy Ribeiro, reconhecendo, empolgado, o brasileiro como o elemento edificador de uma civilização própria nos Trópicos, todos encontraram nas contradições deste País o amálgama de uma nacionalidade especial, porque não nascida da pureza desta ou daquela raça autóctone, pois neste particular somente o eram os nossos indígenas.

O caráter de nossa gente se construiu a partir dos embates entre casa-grande e senzala, escravizador e escravizado (dolorosa constatação), em tempos não tão imemoriais, edificado nos conflitos e pudores perpassados pela colonização que nos alcançou, onde Igreja e Estado se confundiam e o mercantilismo norteava a conquista.

Europeus e asiáticos aportaram, cada um a seu tempo, engrossando o caldo da construção de uma nacionalidade, contribuindo com o que traziam. Iras e indignações étnicas deram lugar à convivência – ainda que forçada, diriam alguns – gerando um formato especial de dirimição de conflitos.

Internamente o brasileiro se discrimina a si mesmo, independente de cor ou credo. Não escapam sergipanos, baianos, paulistas, gaúchos, pernambucanos, mineiros. Todos são “baianos” em São Paulo, são “cornos”, “cabruncos” ou “cabras da peste” no Nordeste. Desanca-se portugueses e “gringos”, como o nomina qualquer estrangeiro.

No entanto, encontrou um singular meio de superar a discriminação e o preconceito: a gozação e o humor fazem de qualquer discriminado o “senhor” da discriminação, pela contradiscriminação. Todo mundo goza todo mundo, ninguém escapa.

Até que surgiu a ideologia das minorias arguindo-se da exclusividade como discriminados, tutoras e destinatárias da discriminação como preconceito: e de sua defesa, como arautos de maniqueísta tribunal. E, como dogma de fé, trazem a lume (e resgatam) o que se encontrava diluído no imaginário da convivência e da tolerância.

Sob este compreender e interpretar reputamos primorosas e lúcidas as considerações e posicionamento de Marcel Leal, no Carta ao Leitor de A REGIÃO de 20 de novembro de 2010, por mais polêmicas que sejam para este ou aquele leitor.

Uma peça para ser lida nas escolas, se quisermos contribuir para afastar das futuras gerações a mazela da discriminação em si, como elemento desagregador. De não fugir da busca de reconhecer – para pacífica coexistência – elementos do objeto conceitual como elementos culturais inerentes a própria realidade, desenvolvidos e alimentados diuturnamente antes de serem postos no imaginário.

Câmara Cascudo mais contribuiu para entender-se a razão das expressões e coisas a seu tempo. Algumas vindas da Antiguidade e aqui sedimentadas pelos europeus. Esquecidas suas origens, postas no limbo do subconsciente, mas resistentes porque fundam a própria existência dos viventes.

No âmbito da musicalidade poucos entendem o que representa o modal, como sistema, no imaginário do canto ou cantoria e composições que só o nordestino dispõe. Pergunte como e por que faz que não saberá. No entanto faz, porque presente no inconsciente transitando pelas gerações. A propósito, Caetano elaborou um primor de peça no sistema modal, Shimun, como o diz o compositor e regente Aderbal Duarte, autor de Percepção Musical – Método de Solfejo Baseado na MPB (Salvador: Boanova, 1996), em conversa com este escriba.

Nessa esteira há elementos de conteúdo sociológico, histórico, antropológico, geográfico e semiológico inseridos no universo conceituado como preconceito que exigem apurada pesquisa para compreendê-lo e não para o confronto pelo confronto.

Evidente que a discriminação preconceituosa há de ser combatida, não a partir das raízes que buscam conceituá-la. A homofobia não está em denominar o homossexual de “viado”, mas de não reconhecê-lo como semelhante e, pior, agredir a sua integridade física como se diferente fora, nem humano como espécie fosse. Ou seja, em conter uma patologia, uma doença alimentada na aversão àqueles que, por razões as mais diversas, optaram ou foram levados a gostar e a se relacionar com pessoas do mesmo sexo.

Nesse diapasão discriminativo é a ideologizada pretensão da superioridade racial, de claro conteúdo eugênico destituído da cientificidade que melhore o Homem em defesa do Homem, olhados todos no plano da igualdade formal em busca de uma utopia denominada igualdade social.

“Cassar o direito de falar de forma preconceituosa contra” quem quer que seja “é cassar o direito à livre opinião, ao livre pensamento” – afirma Marcel Leal.

O corajoso e destemido expressar de Marcel é uma contribuição ao aprofundamento de estudos em torno das diferenças e dos diferentes sob prisma isonômico. Um libelo contra uma forma de discriminação que tende a se desenvolver: a do isolamento do “discriminado” em guetos que alimentarão futuras discriminações, mormente quando as minorias tornarem-se maiorias. Pólos, antes de resistência, que depois podem tornar-se de intolerância.

Adylson Machado é escritor, professor e advogado, autor de “Amendoeiras de outono” e ” O ABC do Cabôco”, editados pela Via Litterarum