Por Wallace Setenta

O Brasil precisa aproveitar a preservação ambiental como ativo econômico. A floresta precisa ser competitiva, ou seja, a floresta em pé precisa ter mais valor, e precisa oferecer valores sustentáveis, mais do que quaisquer lucros gerados por meio do desmatamento. (…) Ao mesmo tempo, quando nós olhamos para a riqueza biológica, climática, hídrica, nós temos de pensar também em todas as propriedades intelectuais, na herança intelectual, em todos os conhecimentos locais de milhares de anos. Temos de pensar também em todos os conhecimentos tradicionais. Isso é um aspecto muito importante quando nós queremos precificar a floresta em pé — [Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado em 21/03/2022]

Sendo assim é inequívoco que o objeto da Portaria Ceplac/MAPA, nº 107, de 18 de fevereiro de 2022, por ser emanada pela Ceplac, após 64 anos de convivência, não tenha identidade com os preceitos ambientais, sociais e econômicos da Cabruca e da sociedade contemporânea, ao recomendar textualmente que “viabilizem o manejo de excesso de sombreamento [arvores em pé] na Cabruca”. Viabilizar o manejo significa “corte raso”? desmatamento? ou seja “derrubar arvores” nativas da Mata Atlântica que se encontram na Cabruca? Sendo assim, pondo em risco algumas essências nativas preservadas e mesmo outras em risco de extinção?

Decorreram 250 anos para conceber a Cabruca, modelo agrícola único, e por um entendimento incorreto cria-se um precedente perigoso, num ato meramente administrativo, numa tentativa de nivelar a Cabruca aos objetivos técnicos produtivistas. Em essência como unir propostas tão distintas, com princípios e propósitos opostos? Sendo assim, a prevalecer-se de uma escolha, que sejam pelos princípios da Cabruca. Pode-se até agregar à Cabruca novas tecnologias, mas não a subtrair na sua essência. Não cometam tamanho equívoco.

Afinal a Ceplac nunca demostrou apreço técnico à Cabruca, nunca a viu como um esteio, base da cacauicultura baiana. Sempre a teve como uma referência de atraso técnico, do que era decadente em relação ao seu famigerado e decantado “pacote tecnológico”.

Sempre enalteceu o “produtivismo” como vanguarda e redenção da lavoura cacaueira – este uma exploração intensiva dos recursos naturais com uso de altas doses de pesticidas e fertilizantes e, portanto, de elevado emprego de capitais. Deu no que deu, primeira crise e o circo desabou, pegou fogo.

Mas a Cabruca permanece lá, inteira como a concebemos, viva, ocupando 60% do total das nossas áreas com cacau.

Fica a questão: podemos encontrar elementos suficientes no cacau produtivista [implantado pela derruba total da mata Atlântica] que nos dê alternativas para superação da crise instalada há 34 anos? Podemos almejar neste modelo opções sustentáveis que convençam a sociedade investir no agroecossistema cacau? Se a escolha for por “produtividade” não seremos competitivos, o oeste baiano apregoa uma produtividade de 1.000[arrobas/hectare], sob os auspícios da Ceplac/Embrapa, Cargill.

No entanto, a Cabruca, como um conhecimento tradicional local de centenas de anos, dispõe de possibilidades e fundamentos sustentáveis. Reduzi-la, descaracteriza-la no sentido de impor raleamento de sombra, apenas como mera compatibilidade produtiva e talvez exploração comercial/madeireira sem avaliar a importância do conjunto dos seus princípios, apenas serve a degradar o patrimônio ambiental regional, nosso maior ativo econômico. Ressalte-se nesse sentido, que tal ato torna-se um “precedente perigoso”, quando os entes públicos federais e estaduais encarregados do assunto não tem demonstrado capacidade de controle e fiscalização da exploração madeireira. Isto posto, além de comprometer a Cabruca, põe em risco os mais expressivos remanescente da Mata Atlântica da Bahia – Patrimônio da Humanidade [ONU].

Nos momentos de crise sempre se utilizaram ou oportunizaram do legado da Cabruca. Agora mais esta! Acometem a sua resiliência, ponto fundamental do sistema, que poderá ser comprometida pelo aclamado manejo técnico do sombreamento, sob a magia da decantada tecnologia moderna.

A ética da Cabruca não se confunde com a degradação do meio natural, ao contrário, funda-se na sua proteção. Claro, pode-se até admitir novas tecnologias moderna, mas não macular a sua “ética” – como referência a herança cultural e a história regional e ao seu compromisso social, ambiental e econômico.
Vida longa ao Sistema Agrícola Tradicional Cabruca – SAT CABRUCA; Patrimônio Cultural Imaterial da Bahia [em trâmite].

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Wallace Setenta é engenheiro agrônomo e diretor do Sindicato Rural de Itabuna