Por Domingos Matos

O primeiro capítulo do remake da novela Renascer, no horário nobre da Rede Globo, estreou ontem, retratando, de forma um tanto poética, como convém ao tipo de narrativa, a história dos coronéis do cacau. Uma história sangrenta, como se viu na telinha, com os jagunços “sentando o dedo” nos desafetos, em nome da sanha insaciável dos patrões por terra, mas com seus herois, a exemplo dos defensores da cabruca. Sempre foi assim, por aqui, e a novela não vai aliviar, pelo que se viu. Mas, peralá.

Peralá, porque ainda no domingo, véspera da estreia, uma liderança indígena Pataxó Hã-Hã-Hãe foi assassinada e outros oito parentes ficaram feridos, numa ação de um grupo miliciano armado, que se reúne sob o lema “Invasão Zero”. Esse grupo é potencialmente conhecido das autoridades, já que policiais, empresários e até blogueiros participam das ações, ativa ou omissivamente, uma vez que muitos milicianos fazem parte de determinados grupos de Whatsapp da região, ou até usam de suas amizades com estes para divulgar reuniões da milícia (veja print).

Mas, quem são esses milicianos? São basicamente fazendeiros da região, geralmente falidos, que se opõem à reforma agrária e/ou à demarcação de terras indígenas. Apresentam, nesse último caso, títulos de posse e propriedade concedidos pelo governo do estado no tempo do… coronelismo.

O Movimento Invasão Zero ganhou força em março de 2023, supostamente como uma resposta ao que os fazendeiros imaginavam que seria o Abril Vermelho do MST. O mote do Abril Amarelo, como foi batizada a primeira ação do Movimento Invasão Zero, foi uma ficção criada pelos fazendeiros, afirmando que naquele mês os sem-terra iriam tocar o terror nas invasões de terras na Bahia.

Para passar do que se dizia um movimento “defensivo” a uma milícia ostensiva foi um pulo. Aqui cabe uma observação: o governo baiano não deu resposta à altura durante os primeiros ataques, em 2023.

A Rede de TV CNN noticiou o que seria o início da onda, afirmando que “teve acesso” a uma planilha do grupo, em 23 de março de 2023. “Fazendeiros da Bahia montam células para enfrentar “Abril Vermelho” do MST”; “A CNN teve acesso à planilha do grupo de fazendeiros, chamado “Invasão zero”, noticiou a rede à época.

Blogs locais também divulgaram ações de repressão a “invasões” do MST em fazendas no sul do estado. Ora, houve claramente uma falha da inteligência das forças de segurança do estado. Ontem, o governo anunciou a criação de uma companhia especializada da PM para resolução de conflitos agrários no estado.

Vale lembrar que o governador Jerônimo Rodrigues se vê pressionado por crimes de repercussão nacional desde o início de sua gestão, seja pelas chacinas promovidas pela PM ao longo do governo Rui Costa, seja pelo assassinato da líder quilombola Mãe Bernadete, dentro do Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, em 17 de agosto. Agora, nem bem o ano começou, Jerônimo já se vê impactado com um crime que chama a atenção do Brasil e do mundo, contra povos originários. Todos por disputa por terras.

Embora seja a novela Renascer um remake, o que não permitiria chamá-la propriamente de uma obra aberta, a crueldade da vida real se impõe, e não seria surpresa se os acontecimentos atuais viessem a ser abordados na adaptação da obra imortal de Benedito Ruy Barbosa.

Porque, se é verdade o ditado que diz que qualquer absurdo que seja pensado já há precedente na Bahia, não é menos verdade que no sul da Bahia, nas terras do cacau, esses absurdos tem se tornado parte de nosso cotidiano.

Domingos Matos é jornalista