Se não foi a famosa autocrítica que a mídia tradicional tanto cobra do PT – e essa não era a intenção – essa entrevista com o ex-ministro Gilberto Carvalho foi uma reflexão generosa sobre as falhas do partido no enfrentamento do golpe contra a presidenta Dilma – sim, aqui, golpe é chamado de golpe. “Faltou o povo nas ruas defendendo nosso governo, mas a culpa não foi do povo, foi de quem não conseguiu dar essa consciência política ao povo”. Nessa entrevista ao blog O Trombone Carvalho fala da importância das eleições municipais para a reconstrução ideológica do Partido dos Trabalhadores. “Espero que as eleições sejam um passo que nos ajude nesse processo de retomada do verdadeiro Partido dos Trabalhadores, com quem nós sempre sonhamos e construímos”.

O senhor foi secretário de Formação do PT, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência e hoje dirige a Escola de Formação do Partido dos Trabalhadores. Faltou politização aos petistas e aos brasileiros para entender o que se passava no processo de impeachment da presidenta Dilma, e assim poder defender a democracia golpeada naquele momento?

Costumo dizer que, de fato, no momento do golpe, a militância foi defender nosso governo, mas o povo faltou, o povo não veio defender o nosso governo. Naturalmente, não se pode, não se deve culpar o povo por isso. A responsabilidade é de quem deixou de organizar, de politizar o nosso povo e as relações que nós tivemos com ele. O nosso governo foi bem sucedido em políticas de inclusão econômica e social básica. Incluímos mais de 40 milhões de brasileiros em um processo mínimo de consumo digno, resgatamos da fome milhares e milhares de brasileiros. Permitimos que esse segmento tivesse acesso a bens a que nunca tiveram acessos, a exemplo da casa, luz elétrica, água, saúde, financiamento da agricultura familiar,  educação, por meio do ProUni e da reforma Universitária, e assim por diante. Só que nós  não conseguimos ser um governo pedagogo, um governo que ajudasse as pessoas a entender que cada conquista dessa era um passo dentro de um projeto, e que cada programa daquele era um programa vinculado a um projeto mais amplo, que fez uma opção clara de priorizar os pobres, os excluídos e que, portanto, beneficiar o pobre reduziria de alguma forma o privilégio dos ricos. Que foi, de fato, o que motivou o golpe. Portanto, de fato, faltou politização, faltou conscientização, faltou formação política – digamos assim.

O senhor vê, hoje, algo que pudesse ter sido feito para organizar o povo, instrumentalizá-lo para a defesa de um governo que representava, como o senhor diz, um projeto maior em benefício desse mesmo povo?

Digo que nós poderíamos ter exercido muito bem uma política diferenciada em relação aos meios de comunicação. A gente poderia ter ajudado a desenvolver no país meios de comunicação democráticos, estimulados por nós, que não fossem partidários nem fossem chapa-brancas governamentais, mas que dessem um tratamento adequado, democrático para a informação, e ao mesmo tempo cultivassem, através de novelas, de teatro, enfim, das várias formas de expressão de comunicação e  cultura, valores civilizatórios, valores adequados com a perspectiva de construir uma sociedade justa, solidária, uma sociedade socialista.

O PT tinha, em 2014, a dimensão da crise causada pela contestação do resultado eleitoral pelo PSDB? O que o partido e a presidenta Dilma poderiam ter feito para mudar aquela situação?

A questão da formulação do golpe, a partir – formalmente falando – da contestação do Aécio, dos resultados de 2014, a recontagem dos votos, aquela história toda… evidentemente que na época não tínhamos noção perfeita do que ia se desenrolar. Nós sabíamos desde 2013 que já havia, da parte da elite brasileira uma decisão de depor a Dilma, de não continuar com o nosso governo. Porque depois de um período em que Lula conseguiu – e a Dilma no primeiro governo – fazer com que os pobres ganhassem, mas os ricos também, tinha ocorrido uma crise econômica, que fez com que fizéssemos uma escolha. E a nossa escolha foi não parar os programas sociais e começar impor custos para a elite, como redução de taxas de juros, não privatização de empresas, estabelecimento de limites de lucratividade de empresas concessionárias nas áreas de serviços públicos e, sobretudo nossa política do pré-sal, que prejudicou muito os interesses norte-americanos e das grandes petroleiras internacionais. Porque nós, ao invés de vender o petróleo do pré-sal barato pra eles, resolvemos colocar a Petrobras como a grande empreendedora do pré-sal e criamos um fundo social para a educação e para a saúde. Então embora não tivéssemos dado muita atenção à contestação do Aécio Neves, é evidente, ficava já claro, que havia uma conspiração, e que o Temer já participava dessa conspiração, a partir do Palácio do Jaburu, que se tornou o grande centro de encontro, de muitas reuniões de conspiração. Nós, na época, fizemos o que podíamos fazer, mas era um tempo muito difícil. A sabotagem promovida pelo Eduardo Cunha, que impedia a aprovação de qualquer projeto nosso na Câmara, o deslocamento do Centrão para o lado dos golpistas, a campanha massiva da imprensa contra nós, foi fazendo com que fôssemos perdendo base social, base popular, e isso nos levou de fato ao processo do golpe. Eu diria que não faltou desejo de lutar, vontade de lutar, nem convocatória para que o povo viesse conosco, só que, como já falei, a militância veio – e nós temos muita gratidão aos militantes que lutaram heroicamente, as mulheres sobretudo, mas o golpe tinha um poder e uma força naquela altura, já, muito grandes.

Qual o papel da esquerda brasileira hoje, num mundo dominado por aqueles que conseguem impor narrativas muito mais do que os que defendem ideias e projetos coletivos?

Eu diria que o papel principal da esquerda hoje é conseguir a retomar um método que foi muito bem sucedido na época da criação dos movimentos sociais principais que temos no Brasil, da criação do PT, da criação do MST, da CUT. Eu me refiro aqui aos anos 1980, quando a gente, inspirados por Paulo Freire, tínhamos uma presença muito forte nas periferias, no chão da fábrica. E, a partir das lutas que fazíamos, nós refletíamos sobre aquelas lutas, ampliávamos a nossa cabeça, ampliávamos a cabeça dos nossos companheiros trabalhadores, dos excluídos, e íamos conseguindo dar um novo sentido para cada luta daquela, e crescendo num movimento cada vez mais amplo, e passamos a ocupar espaços nas prefeituras, nas câmaras municipais até governarmos o país. Nos falta hoje é a conexão com essa periferia, para que a gente possa ter credibilidade para, de fato, combater as mentiras. Isso que se chama hoje de fake news, uma palavra inglesa que quer dizer informação falsa, é uma coisa que sempre existiu na humanidade, só que agora foi potencializada ao extremo no uso dos meios de comunicação, das redes sociais, que através, sobretudo, do Whatsapp, mas também do Instagram e outras, chegam à população mais pobre e ela passa a acreditar naquilo, porque ela não tem uma formação e uma conscientização ampla que nós poderíamos ter feito – e precisamos fazer. Então eu diria que o papel fundamental da esquerda hoje é de ocupar as redes sociais, ocupar esses meios novos de comunicação, de maneira muito competente e muito intensa, apesar de nossas dificuldades, mas junto com isso, precisamos estar presentes, solidários, junto do povo excluído pobre, para que a nossa palavra tenha credibilidade como tem credibilidade para eles, hoje, a palavra do pastor, por exemplo. Portanto, é um desafio nós rompermos uma certa burocracia e o isolamento nosso, para estarmos junto com o povo, não apenas teoricamente, não apenas ir lá dando um discurso de vez em quando, mas estar presente na luta, no dia-a-dia, para que a gente possa, a partir dessa credibilidade, ajudar o povo a fazer a leitura correta da realidade.

Qual a importância das eleições municipais para o Partido dos Trabalhadores nesse contexto de despolitização da juventude e de desencanto da sociedade com a política.

A eleição municipal de 2020 tem, para nós, duas características importantes. A primeira que eleição será feita com um método muito novo. Por esse prolongamento da Covid-19, esse abre e fecha, fecha e abre, que nós temos no país por falta de coordenação, faz com que nós não tenhamos previsão de quando será possível fazer o famoso corpo- a-corpo, a campanha do jeito mais tradicional que sempre fizemos. Portanto, a grande marca dessa campanha, em termos de método, será as redes sociais. Já estamos instruindo os nossos candidatos e candidatas a vereador e prefeito / vereadora e prefeita, em todo o país, em um curso que tem mais de 20 mil participantes, onde nós estamos treinando o pessoal, qualificando o pessoal, tanto pro debate de conteúdo quanto pela forma. Como usar as redes sociais, como montar um Instagram, uma lista de Whatsapp, Facebook e assim por diante. Mas a outra característica ela se dá num momento crítico da vida nacional. E é fundamental que nós tenhamos a consciência de que a campanha não pode ser só pedir voto. Tem que ser uma campanha que consiga fazer esse processo de que falamos acima, de conscientização, de mobilização do povo, de informação da verdade, e de convite que as pessoas se organizem para defender os seus direitos. Temos a consciência de que Bolsonaro só cai se nós tivermos uma grande mobilização popular. E as eleições podem ser, sim, um momento em que a gente possa, apresentando em cada município, os nossos projetos, mas apresentando o nosso projeto nacional, reencantar a juventude, buscar reentusiasmar a nossa militância, para que ela tenha a consciência de que o final dessa eleição, mesmo que a gente não tenha a vitória eleitoral em todos os lugares, há uma vitória política que poderá ser alcançada se nós conseguirmos fazer esse processo de conscientização, de mobilização, na conversa direta com o povo, através das redes sociais, enfim, dos métodos todos que forem possíveis na campanha.

O PT cogita uma volta às origens, a partir dos movimentos populares, com a eleição de representantes nos municípios, para a reconquista dos corações dos brasileiros? É possível repetir o clima de 2002 em 2022?

As eleições municipais podem também se constituir, de fato, num momento em que a gente possa eleger legítimos representantes dos movimentos sociais, das lutas sociais, dos movimentos populares. É muito importante para nós que, de fato, passe a ocupar mais o espaço dentro do Partido, sejam no interno das direções partidárias, sejam nos cargos que ocupamos – de vereadores, deputados estaduais, federais, senadores, prefeitos etc – gente que tenha na cabeça, no sangue, no coração, o engajamento da luta social. Política não pode ser carreira, ninguém pode fazer do mandato de vereador e de prefeito uma profissão. Política é serviço ao povo, é você dedicar sua vida naquilo que o Papa Francisco define muito bem, que a política é uma forma muito prioritária, muito especial, da prática da caridade. Se não for isso, não vale a pena. Melhor ficar em casa. Melhor ir cuidar da vida. Chega de políticos que transformam o mandato em uma forma de subir na vida, uma ferramenta para se conseguir privilégios. Inclusive nosso partido, temos que reconhecer, que há gente extraordinária, gente que luta, gente que é um servidor do povo, mas tem também, infelizmente, esse vírus que entrou para dentro da gente, o virua6da vaidade, o vírus do individualismo, o vírus da vontade de acumular privilégios. Nós temos que combater isso duramente dentro do nosso partido. Então, de fato, a eleição municipal pode ajudar o partido a fazer esse retorno àquilo que nós sempre definimos como a essência de nosso partido, que é a luta, a solidariedade entre os militantes,  a solidariedade com o povo e a preferência pelos excluídos, por aqueles que são as vítimas desse sistema injusto em que nós vivemos. Vale a pena ser do PT se nós tivermos clareza desses princípios. Se não, é melhor ir abraçar um outro partido. E eu espero sinceramente que as eleições de 2020 sejam um passo que nos ajude nesse processo de retomada do verdadeiro Partido dos Trabalhadores, com quem nós sempre sonhamos e que pudemos construir ao longo desses anos.